O relatório divulgado aponta para violência policial, ataques a indígenas e a minorias, e ainda corrupção no Brasil. O relatório denuncia também casos de tortura e agressões sexuais.
Assassinatos arbitrários pela polícia, violência contra indígenas, minorias, ativistas ou comunidade LGBT e atos generalizados de corrupção são alguns dos ataques aos direitos humanos detetados no Brasil, segundo um relatório divulgado esta terça-feira pelos pelos Estados Unidos da América.
As conclusões constam no relatório anual dos direitos humanos, relativo a 2020, divulgado pelo Departamento de Estado norte-americano.
No texto dedicado ao Brasil, as autoridades norte-americanas destacaram a “impunidade e a falta de responsabilização das forças de segurança”, assim como processos judiciais ineficazes que atrasam a justiça, tanto para os perpetradores dos crimes, quanto para as vítimas.
Houve vários relatos de que a polícia estadual cometeu homicídios ilegais. Em alguns casos, a polícia empregou força indiscriminada. (…) Entre os mortos estão suspeitos de crimes, civis e traficantes de drogas que praticam atos de violência contra a polícia. Consequentemente, a extensão das mortes ilegais pela polícia foi difícil de determinar. O Ministério Público Federal investiga se os assassinatos por forças de segurança são justificáveis”, indica o texto.
O relatório, que denunciou ainda casos de tortura e agressões sexuais, focou-se na cidade do Rio de Janeiro, onde a maioria das mortes ocorreram “enquanto a polícia realizava operações contra gangues de narcotraficantes em mais de 1.000 favelas onde vivem cerca de 1,3 milhões de pessoas“.
Organizações não-governamentais (ONG) questionaram se todas as vítimas mortais às mãos da polícia realmente resistiram à prisão, conforme relataram os agentes, e alegaram que a polícia muitas vezes emprega força desnecessária.
De acordo com algumas organizações da sociedade civil, as vítimas da violência policial em todo o país eram, na sua maioria, homens afro-brasileiros jovens. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública informou que quase 75% das pessoas mortas pela polícia em 2019 eram negras”, frisa o documento.
“A impunidade para as forças de segurança é um problema. Os polícias muitas vezes eram responsáveis pela investigação de acusações de tortura e uso excessivo de força praticadas por outros agentes, embora as investigações independentes tenham aumentado”, acrescenta.
Ataques verbais e físicos a políticos e candidatos também são comuns no Brasil, assim como assassinatos de ativistas sociais, de direitos humanos e ambientais. Tal situação levou a ONG Global Witness a classificar o país sul-americano como “extremamente letal” para ativistas.
Outros dos problemas denunciados pelo Departamento de Estado norte-americano são os ataques a povos nativos, muitos deles perpetrados por garimpeiros ilegais que tentam extrair ouro de terras indígenas.
“ONGs alegaram que a falta de regulamentação e a impunidade em casos de invasões ilegais de terras resultaram na exploração ilegal de recursos naturais. (…) As invasões ilegais de terras frequentemente resultavam em violência e até mesmo em morte”, salienta o relatório, destacando 113 assassinatos de indígenas em 2019. Também a comunidade LGBT (sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero) é vitima de várias formas de violência no Brasil.
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil, em parceria com o Instituto Brasileiro de Educação Trans, 124 homens e mulheres transexuais foram mortos em 2019, contra 163 em 2018. A polícia prendeu suspeitos em apenas 9% dos casos. De acordo com alguns líderes da sociedade civil, a subnotificação de crimes é galopante”, diz o documento.
Segundo líderes LGBT, a pandemia da Covid-19 veio limitar severamente o acesso dessa população aos recursos de saúde pública, e muitos cidadãos “estavam em situações domésticas abusivas com famílias que não os apoiavam”.
As autoridades norte-americanas denunciaram ainda “inúmeros relatos de corrupção em vários níveis de governo” e atrasos nos procedimentos judiciais contra pessoas acusadas de corrupção, muitas vezes devido a proteções constitucionais contra políticos eleitos. “Isso muitas vezes resulta em impunidade para os responsáveis“, reforçou.
Foto: BBC – Yanamá Kuikuro diz que os líderes de sua comunidade entenderam a gravidade da pandemia desde o começo (Foto: Associação Aikax via BBC)
Enquanto o Brasil vive seu pior momento da pandemia, uma pequena comunidade indígena no alto Xingu conseguiu vencer a covid-19 mesmo sem amparo do governo federal ou das autoridades locais.
No ano passado, enquanto a gravidade da pandemia era negada pelo governo e subestimada por muitas pessoas no resto do Brasil, os indígenas Kuikuro fizeram lockdown em suas aldeias, fizeram vaquinhas para arrecadar dinheiro para suprimentos médicos e usaram sua experiência com um surto de sarampo para enfrentar o coronavírus.
Mais de 45 mil casos de covid-19 e 622 mortes foram registrados entre indígenas no Brasil, de acordo com dados oficiais da Sesai (a secretaria de saúde indígena). Mas a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) afirma que os números são bem mais altos e contabilizou 1022 mortes e pelo menos 51 mil casos até terça (23/03).
No entanto, entre os cerca de 900 Kuikuro que vivem em oito aldeias no alto Xingu, não houve mortes, e apenas 160 pessoas foram infectadas. E agora todas as pessoas foram vacinadas.
O sucesso é um contraste em relação ao resto do país — o número de mortos já ultrapassou os 300 mil e a média móvel de mortes nos últimos dias chegoou a ultrapassar 3 mil em um único dia.
O líder indígena Yanamá Kuikuro deu um depoimento à BBC sobre como a comunidade conseguiu enfrentar o vírus com sucesso:
Yanamá Kuikuro, presidente da Associação Indigena Kuikuro do Alto Xingu (Aikax)
“A aldeia Ipatse, onde estou, é a aldeia principal. Somente aqui tem 390 pessoas, incluindo as crianças. Aqui a nossa fala e a nossa cultura estão vivas. Apesar que entrou um pouco de cultura não-indígena e a internet já está aqui, nem por isso esquecemos a nossa cultura. Essa tecnologia que entrou facilitou a nossa comunicação.
No ano passado eu viajei a Brasília e vi um aumento de casos de covid no Brasil inteiro. Quando eu cheguei na aldeia, conversei com o meu irmão Afukaká Kuikuro, cacique da aldeia Ipatse, que também já estava acompanhando esse alastramento do vírus. Ele também entendeu o perigo.
Reunimos várias vezes a comunidade no centro da aldeia antes de chegar o vírus aqui. O que a gente pensou junto com a comunidade: como que a gente pode enfrentar esse novo vírus que está chegando? Quem pode nos ajudar?
Quando eu era criança, o meu pai contava que teve epidemia de sarampo aqui no Xingu e morreram muitas pessoas. Os Kalapalo, os Kamaiurás, muitos povos do Alto Xingu morreram. Então quando a gente viu esse vírus novo, os anciões logo lembraram disso. Quando a gente viu no noticiário da televisão que o vírus estava matando muitas pessoas, pensamos: ‘A gente tem que se organizar, tem que fazer lockdown’.
A gente pensou no governo. Mas se a gente pedisse apoio para o governo, não ia chegar logo, não ia acontecer. E o que é que a gente fez, nós mesmos? Primeiro passo: construímos uma casa de isolamento.
Ao mesmo tempo, pensamos também em procurar parcerias. Juntamos pesquisadores de universidades, por exemplo, o Museu Paraense Emílio Goeldi, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a organização People’s Palace Project no Reino Unido e também a Pennywise Foundation dos Estados Unidos.
Eles fizeram uma campanha e arrecadaram R$ 200 mil. Com esse dinheiro, compramos cilindros de oxigênio e concentrador de oxigênio. Compramos remédios e camas para os pacientes se internarem. Contratamos uma médica e um enfermeiro. Isso foi tudo antes de o vírus chegar aqui.
O governo estava dando esse ‘Kit Covid’ e a nossa organização aqui não aceitou, porque não tem estudo [comprovando a eficácia]. A gente fez o nosso protocolo, diferente do protocolo do governo.
Teve umas pessoas da comunidade que ficaram com um pouco de raiva de mim porque eu estava falando todo dia de lockdown, falando para não sair para fora (da aldeia), para usar máscara, para higienizar [as mãos e objetos]. Muita gente ficou com raiva de mim, porque pensavam que eu estava mentindo. Aí depois que chegou esse vírus, eles viram realmente e acreditaram.
O povo Kalapalo pegou esse vírus primeiro. Foi bem grave, levaram algumas pessoas para fora [do território indígena] para entubar. Eles relataram casos de médico destratando indígenas dentro de hospital. Eles mandavam áudios para nós, dizendo que o hospital não estava cuidando bem, não estava dando alimentação.
Então a gente decidiu: quando o vírus chegar aqui na nossa aldeia, se a pessoa for infectada, vamos ter de hospitalizar aqui mesmo na aldeia.
No mês de junho, julho, a covid entrou aqui. Uns pacientes viajaram ao município de Gaúcha do Norte e de lá chegaram infectados. O médico daqui fez o teste rápido e deu positivo. Aí a família toda fez o isolamento domiciliar.
Aproximadamente 160 pessoas foram infectadas nesta aldeia e todas se isolaram nas suas casas. A nossa organização já tinha comprado alimentação de fora da cidade, e também preparamos a nossa comida para levar para aquelas pessoas que estavam isoladas. A equipe de saúde que estava acompanhando aquelas famílias levava a comida pra eles.
Algumas pessoas foram tratadas no hospital que a gente improvisou aqui, mas ninguém precisou receber oxigênio. A gente usou medicina tradicional para ajudar os medicamentos industrializados. O pajé ajudou o trabalho do médico que nós contratamos.
A gente faz uma campanha nas redes sociais e pela internet e levantamos R$ 44 mil. Com esse dinheiro, compramos cestas básicas e coisas que nós aqui já nos acostumamos a comprar na cidade: anzóis, fósforos, linhas de pesca, alguns alimentos das cidades, combustível para o nosso gerador, para motor de popa.
Eu e o meu tesoureiro da associação Aikax fazíamos a compra daqui mesmo e o frete trazia pra nós aqui na aldeia. Claro que era tudo higienizado antes de entrar na aldeia.
O Ministério da Saúde informou que ia priorizar a população indígena, os profissionais da saúde e os quilombolas no processo de vacinação. Algumas vacinas chegaram de avião, outras de carro, outras de barco.
Com a chegada da vacina, teve muita mentira, muitas fake news, muitas pessoas falando para a população indígena que não era para tomar a vacina. Alguns indígenas estavam acreditando nisso. Só que eu e meu cacique, Afukaká, não acreditamos isso. A gente conversou muito com a comunidade para não acreditar em fake news.
Eu e Afukaká já tínhamos recebido a primeira dose da vacina [CoronaVac]. Fomos vacinados no Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu [em Canarana] e as fotos foram colocadas no site, para ser um exemplo para o povo xinguano tomar a vacina. A segunda dose foi na aldeia – todos aqui já foram vacinados.
Quando a vacina chegou, eu lembrei daquela história que meu pai contava. O sarampo matou muitas pessoas, anciões que tinham a história e a cultura [dos seus povos]. Depois da vacina, não teve mais mortalidade.
Quando a gente viu a covid-19, eu pensei, “Nossa, se morrerem todos os anciões e a liderança, não vai ter mais a nossa cultura”.
A vacina ajudou. Hoje as crianças estão crescendo sem aquelas doenças que tinham na época do meu pai: sarampo, coqueluche, varicela. Hoje as crianças estão crescendo bem. Hoje a vacina chega aqui para prevenir gripes, proteger os idosos e as crianças.
Então quando chegou a vacina contra a covid-19 eu lembrei de tudo isso, e pensei, talvez a vacina CoronaVac vai melhorar (a situação) e não vai ter mortalidade na população brasileira.
A nossa luta aqui não acabou ainda. O Mato Grosso está em vermelho, as UTIs estão em colapso, estão aumentando [os casos de covid] e descobriram aquela variante [P.1] do vírus, que está matando mais jovens agora. A gente está vendo que está morrendo muito jovem por essa variedade desse vírus.
A minha preocupação é que o hospital da cidade não está atendendo bem a população indígena. Então eu estou muito preocupado. Como é que a gente pode se organizar de novo? Eu sei que é muito difícil instalar um mini-hospital aqui.
Mas a gente quer se tratar aqui mesmo, não se tratar fora, porque muita gente está morrendo no hospital. Até agora, com os que foram infectados pelo vírus na aldeia, nós conseguimos vencer o vírus aqui mesmo.”
Em resposta ao grave impacto da pandemia, o Amazon Rainforest Journalism Fund (RJF) e o Pulitzer Center estão abrindo um novo edital para bolsas de reportagem, com o apoio institucional da Agência EFE.
Jornalistas, editores e organizações de mídia independentes são convidados a enviarem suas propostas. Serão consideradas principalmente histórias baseadas em reportagens colaborativas, que incluam jornalistas locais e/ou indígenas, tendo em vista as restrições de viagens e riscos à saúde impostas pela pandemia. (Mais detalhes em nosso webinar)*
Estimulamos projetos que façam a convergência dos impactos causados pela intersecção entre a covid-19, desmatamento e outras ameaças críticas para a região. As reportagens devem destacar as vozes locais e ter uma boa estratégia de veiculação, capaz de contemplar tanto os veículos locais quanto nacionais e internacionais.
*Para discutir a cobertura remota, o Amazon RJF e o Centro Pulitzer estão organizando com o apoio dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) o webinar “Cobertura remota na Amazônia durante a pandemia. Como fazer boas reportagens sem arriscar vidas de comunidades e jornalistas”. Sexta-feira, 9 de Abril, 10h00 (hora de São Paulo). Inscrições por este email: amazon.rjf@pulitzercenter.org.
O Monitoramento da Cobertura e Uso da Terra, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstrou que Rondônia diminuiu 38.532 km2 de vegetação nativa entre 2000 e 2018, sendo a terceira Unidade da Federação com maior redução, ficando atrás do Pará (118.302 km2) e Mato Grosso (93.906 km2).
O estudo mostrou ainda que, neste período, Rondônia também ocupou a terceira posição em expansão de pastagem com manejo: 33.259 km2. Assim como no ranking de diminuição de vegetação nativa, Pará e Mato Grosso ocupam as duas primeiras posições em expansão de área de pastagem com manejo, aumentando 83.400 km2 e 45.449 km2 respectivamente.
Além disso, em 2018, as áreas antropizadas (área artificial, área agrícola, pastagem com manejo, silvicultura e mosaicos florestais e campestres) eram bastante expressivas em Rondônia, representando 39,6% da cobertura e uso da terra nesse estado, o maior valor na região Norte.
É importante notar o crescimento da área agrícola em Rondônia, passando de 1.337 km², em 2000, para 3.740 km² em 2018, ocorrido sobre áreas de vegetação florestal, de mosaicos florestais e de pastagem com manejo e, sobretudo, no sudeste de Rondônia, na divisa com Mato Grosso.
O que é o Monitoramento da Cobertura e Uso da Terra?
Nos últimos anos, o IBGE tem divulgado o Monitoramento da Cobertura e Uso da Terra do Brasil, cujo objetivo é espacializar e contabilizar a cobertura e uso da terra do território brasileiro a cada dois anos, permitindo a comparação entre os anos analisados e a geração da contabilidade das mudanças nas formas de ocupação do país. Os produtos disponibilizados pelo Monitoramento cobrem o período 2000-2018 e incluem, além de mapas, gráficos e textos técnicos, a contabilidade de cobertura e uso da terra.
A contabilidade da cobertura e uso da terra em recortes de maior detalhe, como as Unidades Federativas, permitem uma análise mais detalhada da dinâmica de cobertura e uso da terra nessas porções do território, tornando-se uma importante ferramenta para gestores estaduais e instituições de pesquisa com atuação regional, na medida em que revelam dinâmicas associadas ao avanço das fronteiras agrícolas, à demanda industrial por matérias-primas, à expansão da atividade pecuária, entre outras.
Porto Velho- Devido à continuidade da pandemia, cada vez mais forte e mortal, a presidência do Instituto Rondon comunica que o início dos trabalhos físicos da referida entidade só deverá ocorrer em meados de maio ou junho, a depender do progresso da vacinação e da liberação para atividades presenciais. Continuaremos funcionando de forma remota e informal. Na oportunidade, informamos que estamos reformulando o quadro da diretoria e nomeando novos diretores.
Ação aberta hoje (3/3) cobra gigante varejista por venda de produtos ligados ao desmatamento
Povos indígenas da Amazônia brasileira e colombiana e ONGs da França e dos EUA abriram nesta quarta-feira (3/3) uma ação no tribunal de Saint-Etienne contra o gigante varejista mundial Grupo Casino por vender produtos de carne bovina ligados ao desmatamento e ao garimpo de terras. A ação foi detalhada em coletiva de imprensa realizada na manhã de hoje e, segundo os autores, o processo busca reparações por violações sistemáticas de direitos humanos e de leis ambientais nas cadeias de fornecimento do Grupo Casino no Brasil e na Colômbia durante um longo período de tempo.
Esta é a primeira vez que uma cadeia de supermercados é levada à justiça por desmatamento e violações dos direitos humanos sob a lei francesa de due diligence adotada em março de 2017 (“loi sur le devoir de vigilance” em francês). Grupos indígenas reclamam indenização por danos causados às suas terras tradicionais e pelo impacto em seus meios de subsistência.
De acordo com as evidências compiladas e analisadas pelo Centro de Análise de Crimes Climáticos (CCCA) para este caso, o Grupo Casino comprou regularmente carne bovina de três abatedouros de propriedade da empresa JBS. Os três abatedouros abasteceram gado de 592 fornecedores responsáveis por pelo menos 50 mil hectares de desmatamento entre 2008 e 2020. A área desmatada é cinco vezes maior do que a cidade de Paris.
Segundo os autores da ação, as provas apresentadas nesta ação judicial também mostram violações dos direitos indígenas. Em um dos casos documentados, as terras tradicionais do povo Uru Eu Wau Wau, no estado de Rondônia, foram invadidas por fazendas de gado que forneciam carne bovina ao supermercado Pão de Açúcar do Grupo Casino.
Os autores do processo são a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), a Organização Nacional dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana (OPIAC), a Federação dos Povos Indígenas do Pará (FEPIPA), a Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Canopée, Envol Vert, FNE, Mighty Earth, Notre Affaire à Tous e Sherpa.
“Com esse processo, esperamos que a empresa arque com as consequências em relação a esses impactos e, de alguma maneira, tente amenizar a situação colocada dentro das Terras Indígenas”, afirma a assessora jurídica da COIAB Cristiane Baré, do povo Baré.
“A pecuária e as monoculturas estão colocando nossas vidas em risco e causando a extinção física dos povos indígenas”, afirma Fany Kuiru Castro, do povo Uitoto da Colômbia e diretora da OPIAC. “Portanto, essa ação judicial tem todo o respaldo e apoio da nossa organização.”
Sem compromisso
As operações do Casino na América do Sul respondem por quase metade (47%) das receitas globais do grupo. Apesar dos vários relatórios ligando os produtos do Grupo Casino a desmatamento e grilagem de terras, a empresa não se comprometeu a vender apenas carne com desmatamento zero em suas lojas Pão de Açúcar, Casino ou Éxito. E a despeito do crescente corpo de evidências ligando a maior empresa de carne bovina do mundo, a JBS, ao desmatamento e até mesmo ao trabalho escravo, o Grupo Casino continua comprando da JBS.
A empresa escreveu aos demandantes que “devido ao baixo número de relatórios que citam o gado como fator de desmatamento na Colômbia”, o Casino não considera relevante incluir o país no escopo de seu plano de vigilância. No entanto, a Colômbia apresenta uma das maiores taxas de desmatamento do mundo, sendo o gado o principal causador de acordo com dados oficiais. A pecuária também é o principal vetor do desmatamento na América do Sul, principalmente no Brasil.
“Em 2021, em um mundo onde tecnicamente podemos rastrear e monitorar tudo, um grupo internacional chamado Casino, que teve um grande crescimento na América do Sul nos últimos anos, não consegue eliminar o desmatamento de toda a sua cadeia de abastecimento. Isso é inaceitável!”, afirmou Boris Patentreger, co-fundador do Envol Vert.
“O Casino não é o único varejista responsável, todos eles têm o poder de mudar as coisas”, ressalta Klervi Le Guenic, ativista da Canopée. “O Carrefour é um dos maiores varejistas do Brasil e também está particularmente exposto a riscos de desmatamento. Eles têm que abandonar as empresas de carne ligadas à destruição da Amazônia.”
Sobre os autores do processo:
COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), fundada em 19 de abril de 1989, é a maior organização indígena regional do Brasil, que surgiu por iniciativa de lideranças de organizações indígenas. A missão da COIAB é defender os direitos dos povos indígenas à terra, saúde, educação, cultura e sustentabilidade, levando em consideração a diversidade dos povos e buscando sua autonomia por meio da articulação política e do fortalecimento das organizações indígenas.
OPIAC (Organização Nacional dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana) é a organização indígena colombiana dos povos indígenas da Amazônia colombiana perante instituições nacionais e internacionais. Seu principal objetivo é garantir que todos os direitos coletivos e individuais de seus membros sejam respeitados e reconhecidos por todos os atores localizados na região amazônica colombiana.
FEPIPA (Federação dos Povos Indígenas do Pará) fundada em abril de 2016, é uma organização indígena criada para promover o bem-estar social, político, econômico e cultural e os direitos humanos dos povos indígenas. Seu objetivo é defender e discutir os interesses coletivos dos povos e comunidades indígenas do Estado do Pará, promovendo sua organização social, cultural, econômica e política, fortalecendo sua autonomia.
FEPOIMT (Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso), criada em junho de 2016, nasceu da necessidade de união para ação e articulação política, voltada para a organização social, cultural, econômica e o desenvolvimento sustentável e político dos povos e organizações indígenas de Mato Grosso. Seus principais desafios são a garantia e regularização fundiária, a gestão ambiental, a proteção do território e a luta pelos direitos indígenas.
CPT (Comissão Pastoral da Terra) faz parte das Comissões Pastorais da Conferência Episcopal do Brasil. Foi criada para defender os camponeses e garantir uma presença solidária e fraterna entre as populações rurais. Presente em muitas dioceses, está comprometida com a questão crucial da partilha da terra e contra a destruição do meio ambiente.
Envol Vert atua pela preservação de florestas e biodiversidade na América Latina (principalmente Colômbia e Peru) e na França. Desde 2011, desenvolve projetos de campo concretos e eficazes que incluem o reflorestamento de áreas degradadas, o desenvolvimento de sistemas agroflorestais e alternativas à extração ilegal de madeira como ecoturismo, desenvolvimento de reservas naturais, conservação e reintrodução de espécies. A Envol Vert também realiza campanhas de comunicação e ações de conscientização para estimular empresas e cidadãos a mudar seus padrões de produção e consumo.
Mighty Earth é uma organização de campanha ambiental global que trabalha para proteger as florestas, conservar os oceanos e lidar com as mudanças climáticas. Trabalha para impulsionar ações em larga escala para uma agricultura ambientalmente responsável que proteja os ecossistemas nativos, a vida selvagem e a água, e respeite os direitos da comunidade local. Nossas campanhas e nossa equipe têm desempenhado um papel de liderança em persuadir as maiores empresas de alimentos e agricultura do mundo a adotar políticas para eliminar o desmatamento e o abuso dos direitos humanos de suas cadeias de abastecimento e impulsionar a adoção de mudanças de bilhões de dólares para energia limpa.
Notre Affaire à Tous é uma associação que trabalha para proteger a vida, os bens comuns naturais e o clima por meio do uso da lei. Vindos do movimento pelo reconhecimento do crime de ecocídio no direito internacional para punir os crimes mais graves contra o meio ambiente e na origem do “Caso do Século”, os membros do Notre Affaire à Tous se posicionam como ” defensores do planeta “, buscando estabelecer por meio da jurisprudência, da advocacia e da mobilização cidadã uma responsabilidade efetiva e objetiva do ser humano com o meio ambiente.
Seattle Avocats é um escritório de advocacia especializado em questões de responsabilidade corporativa por violações de direitos humanos e ambientais. Sébastien Mabile e o François de Cambiaire representam ONGs e comunidades no âmbito das primeiras ações intentadas com base na lei sobre o dever de vigilância das empresas, em particular contra a Total e contra o grupo de transportes XPO Logistics, e são interessados, em particular, nos debates em curso a nível internacional e europeu sobre a responsabilidade social e penal das multinacionais. No que diz respeito a danos particularmente graves ao meio ambiente, com consequências igualmente graves para os direitos das populações indígenas, o escritório de advocacia Seattle Avocats oferece seu apoio e experiência à coalizão internacional de associações que convocam o grupo Casino a aguardar. cumprir a lei sobre o dever de vigilância.
Sherpa é uma associação criada em 2001 que tem como missão combater as novas formas de impunidade vinculadas à globalização e defender as comunidades vítimas de crimes econômicos. Sherpa trabalha para colocar a lei a serviço de uma globalização mais justa. A ação da associação é baseada em quatro ferramentas interdependentes: pesquisa, litígio, advocacia e capacitação. Essas ações são realizadas por uma equipe de juristas e advogados. As atividades de Sherpa ajudaram a compensar comunidades afetadas por crimes econômicos e contribuíram para decisões judiciais históricas contra empresas multinacionais e políticas legislativas inovadoras.
Canopée Forets Vivantes é uma nova organização fundada em 2018 que surge da necessidade crítica de construir um contrapoder cidadão para melhor proteger as florestas na França e no mundo. Somos uma associação de sinos que relata as ameaças às florestas. Não apenas relatamos, o que queremos é atuar na raiz dos problemas, produzindo uma contra-expertise de qualidade e trazendo-a para o espaço público. Canopée é membro da Friends of the Earth e do grupo SOS Forêt.
France Nature Environnement é a federação francesa de organizações voluntárias para a preservação da natureza e proteção ambiental. Reunimos 3.500 ONGs francesas, em 53 organizações no continente francês e em territórios ultramarinos. Desde 1968, lutamos pela transição ecológica liderando a mobilização dos cidadãos. Conscientizamos o público por meio da educação ambiental. Estamos constantemente nos empenhando para aprimorar a legislação ambiental. Contribuímos regularmente para as políticas públicas francesas e europeias para melhores regulamentações ambientais. Por meio de denúncias, garantimos que eles realmente sejam cumpridos.
O documento, divulgado nesta quinta-feira, 25 de fevereiro, analisou os pedidos de pesquisa (requerimentos e autorizações) para o ouro registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM), e que indicam o interesse pela mineração nessas áreas.
O resultado é que, até o final de 2020, o país já tinha 6,2 milhões de hectares ameaçados pela busca pelo ouro em áreas protegidas da Amazônia Legal, o equivalente a dois países como a Bélgica ou 40 vezes a cidade de São Paulo. Desses, 3,8 milhões de hectares estão em Unidades de Conservação e 2,4 milhões de hectares estão em Terras Indígenas.
Ao todo, são 85 territórios indígenas afetados pelos pedidos de pesquisa para o ouro e 64 Unidades de Conservação. Somente na Terra Indígena Yanomami, entre os estados do Amazonas e de Roraima, são 749 mil hectares sob registro. Na Terra Indígena Baú, no Pará, a segunda em extensão de processos, 471 mil hectares estão registrados, ocupando um quarto de seu território. De acordo com o estudo, desde 2018 tem havido um aumento no número de pedidos em Terras Indígenas, batendo um recorde no ano passado, com 31 registros de pesquisa.
Gerente de Projetos e Produtos do Escolhas, Larissa Rodrigues destaca a relevância da análise no atual cenário de aumento da produção de ouro na Amazônia e diante de iniciativas que pretendem liberar a mineração em Terras Indígenas – como o Projeto de Lei 191/2020, apresentado pelo Governo Federal –, e em Unidades de Conservação, e também regularizar operações que já ocorrem dentro dessas áreas.
Em 2020, os municípios da Amazônia Legal arrecadaram uma compensação financeira pela extração de ouro 60% maior do que todo o ano de 2019 e 18 vezes acima do valor registrado há dez anos.
“Infelizmente, esse aumento na produção de ouro vem acompanhado de um lastro de destruição ambiental e social, além de não trazer desenvolvimento para a região, como confirmado em recente estudo do Escolhas. Não são poucas as notícias que estampam os jornais com um ouro manchado pela invasão de territórios indígenas, violência, tráfico de drogas e armas, lavagem de dinheiro, trabalho escravo, prostituição, contaminação dos rios e de pessoas pelo mercúrio e desmatamento”, comenta Larissa.
O estudo destaca ainda que a busca pelo ouro na Amazônia está enraizada em práticas ilegais, que hoje respondem por cerca de 16% da produção do país, com a extração em áreas proibidas e sem nenhum tipo de controle, mas que a ilegalidade pode ser muito maior, já que não há como contabilizá-la ao certo.
“Hoje, o controle social sobre a atividade é pequeno. Faltam transparência e mecanismos de verificação para os dados do setor e não existe um sistema efetivo de rastreabilidade, que permita acompanhar a origem do ouro produzido. Isso prejudica as ações de fiscalização e controle e fomenta o comércio ilegal no país, pressionando ainda mais as áreas que deveriam estar protegidas pelo bem do meio ambiente e da sociedade”, acrescenta Larissa.
Foto: Terra Indígena Uru Eu Wau Wau é uma das áreas protegidas que tiveram pedaços anunciados ilegalmente no Facebook; líder Bitaté (à esq.) cobrou providências. — Foto: BBC
Reportagem exclusiva da BBC encontrou dezenas de anúncios no Facebook em que invasores negociam áreas de floresta por valores que chegam a milhões de reais; entre os lotes anunciados, há trechos de unidades de conservação e terras indígenas.
VEJA O DOCUMENTÁRIO NO FINAL DA MATÉRIA
Pessoas que invadem e desmatam ilegalmente trechos da Floresta Amazônica estão anunciando as áreas no Facebook em busca de compradores.
Uma investigação da BBC encontrou na plataforma dezenas de anúncios em que vendedores negociam pedaços da floresta ou áreas recém-desmatadas, que eles não possuem, por valores que chegam à casa dos milhões de reais.
Há áreas à venda até mesmo dentro de unidades de conservação e de terras indígenas. Segundo a lei, é proibido vender áreas que sejam parte de terras indígenas ou unidades de conservação. São áreas de domínio público que se destinam exclusivamente a populações tradicionais.
A investigação deu origem ao documentário Amazônia à venda: o mercado ilegal de áreas protegidas no Facebook, disponível a partir de meio-dia (hora de Brasília) desta sexta-feira (26/02) no canal da BBC News Brasil no YouTube e transmitido mundialmente pela BBC.
O documentário mostra que o mercado ilegal de terras na Amazônia está aquecido com a perspectiva de que o Congresso anistie invasões recentes e permita que invasores obtenham os títulos das áreas.
Atualmente, só áreas públicas desmatadas até 2014 são passíveis de regularização, mas a bancada ruralista e o governo federal articulam um Projeto de Lei que prorrogaria o prazo.
O documentário revela também como a grilagem — ocupação ilegal de terras públicas — avança na Amazônia brasileira.
É um padrão que se repete. Grupos de grileiros se organizam em associações com CNPJ, contratam advogados, mantêm laços com políticos e pressionam órgãos públicos a lhes conceder as áreas invadidas.
Como eles não detêm a propriedade oficial da terra, muitos invasores usam um registro oficial, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), para reivindicar as áreas griladas e colocá-las à venda, tentando dar um aspecto de legalidade às transações.
O problema é que o CAR não é prova de direito à propriedade sobre uma área. E, por ser autodeclaratório, em tese, qualquer pessoa pode registrar qualquer parte do território nacional como se fosse sua dona e usar isso em uma futura batalha jurídica pela posse da terra.
Anúncio oferece áreas de mata dentro da Floresta Nacional do Aripuanã, no Amazonas; florestas nacionais são públicas e se destinam a comunidades tradicionais — Foto: BBC
Desmatamento em alta
A investigação mostra ainda estratégias que os vendedores usam para driblar a fiscalização e evitar multas, como dificultar o acesso aos terrenos grilados e manter documentos em nome de terceiros.
O uso do Facebook, uma plataforma pública, para a venda de áreas de floresta revela ainda a sensação de impunidade expressa pelos entrevistados na investigação.
O alcance irrestrito dos anúncios na plataforma ameaça agravar o desmatamento na Amazônia, em alta desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, em 2019. Entre agosto de 2019 e julho de 2020, o bioma perdeu 11.088 quilômetros quadrados, o maior índice desde 2008.
A BBC identificou trechos desmatados ilegalmente no ano passado à venda na rede social.
Os anúncios estão na seção “Venda de imóveis residenciais” do MarketPlace, espaço do Facebook aberto a todos os usuários.
Outdoor dentro de serraria em Ariquemes (RO); Jair Bolsonaro recebeu 72% dos votos no segundo turno em Rondônia. — Foto: BBC
Após vários meses de pesquisa, foram mapeadas dezenas de anúncios com aparentes ilegalidades em diversos Estados amazônicos.
Muitos vendedores admitem nos próprios anúncios que desmataram as áreas e não têm títulos que comprovem a propriedade dos lotes.
Desmatar floresta sem autorização é crime com pena de até quatro anos de prisão e multa. Já vender terras sem possuir títulos que comprovem a propriedade pode ser enquadrado como estelionato, segundo advogados entrevistados. O crime tem pena de até cinco anos de prisão e multa.
Já compradores podem ter a posse invalidada pela Justiça ou ser enquadrados no crime de invasão de terras públicas, caso se comprove que sabiam que as áreas eram públicas.
Em nota, o Facebook afirmou que usuários têm de seguir as leis ao fazer negócios pela plataforma e que está à disposição das autoridades para tratar das questões levantadas pela investigação.
Câmera escondida
Para comprovar que as terras anunciadas de fato existiam e de que os anúncios não eram simplesmente parte de um golpe virtual, a equipe da BBC se encontrou com quatro vendedores em Rondônia, passando-se pela assessoria de um comprador fictício.
Rondônia é um dos Estados com mais anúncios do tipo no Facebook. Quase completamente coberto pela Floresta Amazônica até 1980, já perdeu cerca de um terço de suas matas nativas.
As reuniões foram filmadas com câmera escondida. Vários vendedores elogiaram Bolsonaro nas gravações e manifestaram a expectativa de regularizar as áreas invadidas durante seu governo.
Entre as áreas à venda que foram identificadas, há um terreno dentro da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau (RO), dois na Floresta Nacional do Aripuanã (AM) e um na Reserva Extrativista Angelim (RO). As áreas foram localizadas cruzando-se as coordenadas geográficas com mapas e imagens de satélite.
Floresta ‘pronta para a agricultura’
As duas áreas à venda na Floresta Nacional do Aripuanã somam 1.660 hectares (o equivalente 1.660 campos de futebol) e foram oferecidas ao custo de R$ 3,2 milhões no total.
Corretor Alcimar Araújo da Silva, que postou anúncio de áreas dentro de floresta nacional, durante filmagem com câmera escondida em seu escritório em Porto Velho. — Foto: BBC
Os lotes foram anunciados no Facebook por um corretor de Porto Velho, Alcimar Araújo da Silva, que tem um escritório no centro da cidade. O post mostra o número de registro de um dos lotes no Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Uma consulta no site do CAR mostra que a área está 100% dentro da Floresta Nacional do Aripuanã e tem 98,6% de seu território coberto por mata nativa. O anúncio diz, porém, que a área está “pronta para a agricultura”.
Quando indagado sobre os documentos dos lotes, em encontro filmado com câmera escondida, o corretor disse que só poderia cedê-los após o envio de uma carta de intenção de compra. Ele não quis revelar a identidade do pretenso dono das áreas.
O corretor sugeriu ainda que seria possível desmatar até 50% de cada lote — o que constituiria irregularidade mesmo que as áreas fossem de propriedade particular. Segundo o Código Florestal, donos de terras na Amazônia devem preservar pelo menos 80% de suas propriedades.
Questionado sobre restrições ambientais que hoje limitam atividades agropecuárias na Amazônia, ele disse acreditar que elas serão suprimidas pelo atual governo.
“O empecilho do meio ambiente, o negócio dos índios, o Bolsonaro vai passar por cima, e aí a tendência é asfaltar até Manaus”, afirmou.
Madeireiro derruba árvore em área protegida nos arredores de Porto Velho; Rondônia já perdeu um terço de sua mata nativa. — Foto: BBC
Alguns meses após o encontro, a BBC contatou o corretor para informá-lo de que ele havia sido gravado e pedir esclarecimentos sobre suas colocações, mas ele não se manifestou.
Terra indígena à venda
Outro anúncio encontrado no Facebook oferece um lote de 21 alqueires (o equivalente a 57 campos de futebol) “todo em mata, com toda madeira ainda para tirar” no município de Buritis (RO), por R$ 126 mil.
Com base em coordenadas geográficas citadas no anúncio, a BBC descobriu que a área está dentro da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau, que abriga o maior trecho de floresta preservada em Rondônia.
Órgãos do governo já contaram 209 habitantes indígenas no território, mas a população total é maior, pois há registro de cinco grupos isolados na área, com número desconhecido de integrantes.
Em encontro gravado com câmera escondida, o pretenso proprietário do lote à venda, Alvim Souza Alves, admitiu que a área fica dentro da terra indígena, mas disse integrar um grupo que busca regularizar a ocupação com autoridades em Brasília. Ele também disse esperar que o caso seja solucionado pelo governo Bolsonaro.
Imagens de satélite mostram avanço do desmatamento em Rondônia entre 1985 (à esq.) e 2020; Estado já perdeu um terço da cobertura original — Foto: Google
“Vou te falar a verdade: se não liberar com o Bolsonaro lá, não libera mais, não”, afirmou.
Porém, segundo advogados entrevistados, qualquer tentativa de reduzir a terra indígena provavelmente seria judicializada e dependeria da chancela do Supremo Tribunal Federal (STF).
Alves afirmou que a inclusão de seu lote na terra indígena se deveu a um “erro de digitação” quando o território foi demarcado, nos anos 1990 — posição contestada pela Funai e pelos indígenas.
Afirmou ainda que não há indígenas em seu terreno, embora eles circulem pela região.
Contatado pela BBC após o encontro filmado com câmera escondida, Alves não se manifestou.
Desmatamento na Amazônia aumentou em janeiro, segundo Imazon
‘Desmatar nossas vidas’
A BBC mostrou o anúncio de Alves a Bitate Uru Eu Wau Wau, presidente da principal associação da terra indígena.
“Isso é uma falta de respeito”, ele afirmou. Bitate cobrou o Facebook e o governo a tomarem providências.
Segundo o líder indígena, o lote à venda fica numa área usada pela comunidade para caçar, pescar e coletar frutos.
Toras de árvores amazônicas prontas para serem vendidas em depósito próximo ao rio Jamari, em Rondônia. — Foto: BBC
“Eu não conheço essas pessoas. Acho que o objetivo delas é desmatar a terra indígena, desmatar o que está de pé. Desmatar as nossas vidas, vamos dizer assim.”
Laços com políticos
Alvim Alves diz ter comprado o lote de um membro da Associação Curupira, formada por outros postulantes a pedaços da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau.
Em 2017, uma operação da Polícia Federal prendeu 14 pessoas acusadas de invadir o território — entre as quais o então coordenador da associação, Nelson Bispo dos Santos.
No encontro com a reportagem da BBC gravado com câmera escondida, Alves apresentou outro pretenso proprietário de lotes na terra indígena, Edinário da Silva Batista.
Batista citou dois políticos que, segundo ele, têm apoiado as demandas do grupo: o ex-senador e ex-governador de Rondônia Ivo Cassol (PP-RO) e o deputado federal Coronel Chrisóstomo (PSL-RO).
Alvim Alves tentou vender pelo Facebook um lote no interior da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau. — Foto: BBC
Segundo Batista, na véspera da eleição de 2018, o então senador Cassol prometeu ao grupo que os “assentaria” na terra indígena e brigaria para regularizá-los.
“Ivo Cassol, se tivesse ganhado, ele disse: ‘Eu assento vocês lá e depois a gente vai brigando com usucapião’. Mas aí ele teve aquele processo e não pode sair (candidato)”, disse Batista.
O processo a que Batista se referiu foi a condenação de Cassol por fraude em licitação quando ele era prefeito em Rolim de Moura, entre 1998 e 2002, e que o impediu de concorrer à reeleição ao Senado, em 2018.
Em março de 2018, em reunião da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, Cassol pediu ao então presidente da Funai, Franklimberg Ribeiro de Freitas, que intercedesse em favor de ocupantes da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau e endossou a tese de que teria havido um “erro de digitação” na demarcação da área.
Já o presidente da Funai disse que a terra indígena estava sendo invadida por um grupo “irregular, (que) inclusive está praticando grilagem”, e questionou a tese sobre a falha na demarcação. “Se houve o erro, por que não se recorreu na época?”, indagou.
Franklimberg deixou a Presidência da Funai em junho de 2019.
Questionado pela BBC News Brasil sobre o episódio, Cassol disse que nunca teve contato com o grupo de Batista e nunca apoiou “grileiros de terras”.
Cassol disse que, na audiência no Senado com o presidente da Funai, não estava tratando de invasores, mas sim de 105 famílias assentadas pelo Incra na região antes da demarcação da terra indígena. “Cabia a mim como senador buscar o entendimento entre as partes dentro da lei.”
Também apontado por Batista como um aliado, o deputado federal Coronel Chrisóstomo disse à BBC que ajudou o grupo a se reunir com o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o Ministério do Meio Ambiente e a Funai, mas não sabia que eles haviam invadido uma terra indígena.
Deputado federal Coronel Chrisóstomo foi apontado por grupo de grileiros como um de seus principais apoiadores em Brasília — Foto: BBC
“Eles não me contaram. Se eles invadiram, não têm mais o meu apoio”, ele afirmou à BBC em seu escritório em Porto Velho.
“O parlamentar, qualquer parlamentar, não sabe de tudo. Porque as pessoas trazem ao parlamentar aquilo que há interesse para ela, entendeu? Foi o caso”, disse Chrisóstomo.
Contatado pela BBC após a gravação, Edinario Batista não se manifestou.
Documentos fraudados
Para tentar comprovar que era dono do lote à venda, Alvim Alves apresentou uma cópia do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do terreno.
O CAR descreve a ocupação do solo em cada propriedade rural e foi criado pelo governo federal em 2012 para facilitar o controle do desmatamento.
Edinario Batista diz ter sido recebido por autoridades em Brasília para tratar de regularização de lotes dentro da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau. — Foto: BBC
Uma visita ao site do CAR mostra que a área reivindicada por Alves foi de fato registrada e que 100% do lote está dentro da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau. O sistema não apenas permite que qualquer um registre qualquer terra como também não impede que se reivindiquem áreas protegidas.
Em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) identificou quase 10 mil registros de CAR que se sobrepõem a terras indígenas no país.
Em entrevista à BBC News Brasil, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que usar o CAR para tentar legitimar áreas ocupadas ilegalmente é crime, e que cabe às polícias e ao Ministério Público investigar as irregularidades (leia mais abaixo).
Grilagem como ‘investimento’
A investigação mostra ainda como a destruição da Amazônia pode ser altamente lucrativa e como um pedaço de floresta pode passar por várias mãos até se transformar numa fazenda.
Vários vendedores contatados disseram que haviam ocupado ou adquirido os lotes unicamente com a intenção de “investir” — ou seja, buscavam revendê-los por um preço maior do que o gasto na área.
Todos tinham outras fontes de renda e disseram que nunca pretenderam instalar fazendas nas áreas.
Um dos fatores que estimulam a valorização de terras na Amazônia é a expectativa de regularização da ocupação.
Queimada em Rondônia; ao desmatar um terreno, grileiros creem ter mais chance de poder regularizar a ocupação. — Foto: BBC
Uma estratégia comum entre invasores de áreas protegidas é desmatar ao máximo o território e depois pleitear junto a autoridades a extinção do status de proteção, argumentando que a área já foi transformada e não serve mais ao propósito original.
Segundo um estudo da ONG Conservação Internacional, 85 unidades de conservação no Brasil foram extintas, reduzidas ou tiveram seu status de proteção rebaixado até 2017.
Já invasores de terras públicas que não integram unidades de conservação se alimentam da expectativa de que o Congresso postergue a data limite a partir da qual áreas públicas ocupadas não podem ser regularizadas.
Hoje, só áreas públicas desmatadas até 2014 são passíveis de regularização, mediante uma série de condições.
Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro editou uma Medida Provisória que esticava esse prazo até dezembro de 2018, mas a iniciativa perdeu validade por não ter sido aprovada no Congresso a tempo.
Agora congressistas debatem um Projeto de Lei que pode postergar o prazo mais uma vez.
Faixa de floresta ladeada por plantações de soja em Rondônia — Foto: BBC
Valorização pós-desmatamento
Outro fator que costuma valorizar as terras amazônicas é o desmatamento.
Em março de 2020, Fabrício Guimarães anunciou no Facebook uma área de 39,5 alqueires (107 campos de futebol) “em mata” em Abunã, um distrito de Porto Velho, por R$ 190 mil.
Uma foto de satélite no anúncio mostrava um lote coberto por floresta à beira do rio Madeira, próximo à fronteira com a Bolívia.
Questionado sobre o terreno em agosto, Guimarães disse que o preço havia subido para R$ 515 mil, pois desde então ele tinha desmatado a área e plantado capim.
Fabrício Guimarães mostra a área próxima ao rio Madeira em Abunã que ele desmatou e anunciou no Facebook — Foto: BBC
Sem floresta e pronta para a criação de gado, a área ficou 270% mais cara.
Em conversas no Whatsapp, Guimarães disse que o único documento do lote que ele tinha era um contrato de compra e venda — registro em cartório que tampouco comprova a propriedade e não lhe dá o direito de desmatá-la.
Em seu perfil no Facebook, ele diz trabalhar como supervisor em um frigorífico de Humaitá, município amazonense na divisa com Rondônia.
Imaginando que lidava com potenciais compradores, ele levou a equipe da BBC até o lote e mostrou a área recém-desmatada com uma motosserra.
Imagens de satélite acessadas pela BBC confirmam que o local foi desmatado entre maio e julho do ano passado.
Imagens de satélite mostram lote anunciado por Fabrício Guimarães em maio de 2020 (à esq.), antes do desmatamento, e em janeiro de 2021 — Foto: Planet Labs
Uma estrada de terra que parte da BR-364 dá acesso ao terreno. No fim da jornada, a via fica tão estreita que é preciso abandonar o carro e caminhar por pouco mais de um quilômetro até o lote.
Guimarães diz que o afunilamento é proposital e busca impedir que fiscais cheguem à área.
“Eu não quis arrumar (a estrada) porque eu desmatei agora, recente. Aí facilita para o pessoal (da fiscalização) ir lá”, afirma.
Procurado pela BBC após o encontro, Guimarães não se manifestou.
Venda ilegal de gado
História semelhante à de Guimarães é narrada por André Alves de Souza, pecuarista que ofereceu pelo Facebook um lote dentro da Reserva Extrativista Angelim, no município de Cujubim (RO).
No encontro gravado com câmera escondida, Souza — que também só possuía um contrato de compra e venda do lote — disse que adquiriu a área para “investir”.
Ele disse que desmatou o terreno há alguns anos e jamais teve a intenção de ocupá-lo, pois já possuía outras fazendas na região.
André Alves de Souza anunciou no Facebook um lote dentro da Reserva Extrativista Angelim, em Cujubim (RO). — Foto: BBC
Assim como Alvim Alves, Souza disse integrar uma associação que representa os ocupantes da reserva. Ele disse que uma advogada contratada pelo grupo os orientou a tomar uma série de providências para fortalecer a reivindicação das áreas.
“Ela pediu para construir casa, fazer criação (de animais), mas não tive tempo”, afirmou.
Pela lei, quem pleiteia regularizar ocupações de terra precisa provar que utiliza a área economicamente, entre outros fatores.
Questionado se seria possível criar gado naquela área mesmo sem o título da terra, Souza disse que sim. Ele então contou como fazia para vender bois que criava em outra área sem documentação.
“Hoje eu não consigo matar, nessa área minha que eu tenho aqui, eu não consigo matar boi para exportação. Os frigoríficos de Rondônia (voltados à exportação), como funcionam: você tem de ter o documento da terra certinho, o CAR certinho, para você conseguir matar. Mas tem frigorífico que mata e compra do mesmo jeito. Eu vou matar nos outros frigoríficos que matam.“
Procurado pela BBC após o encontro, Souza não respondeu.
‘Caos fundiário’
Para Raphael Bevilaqua, procurador da República em Rondônia, boa parte da elite política e econômica de Rondônia tira proveito do “caos fundiário” no Estado.
Bevilaqua afirma que 70% das terras de Rondônia são da União. “A maioria dos ditos proprietários de terras (em Rondônia) são pessoas que na verdade não têm a propriedade (por ocuparem terras públicas)”, afirma.
“Isso gera todo tipo de demanda e de reivindicações — tanto das pessoas que não têm acesso à terra e querem cultivar para trabalhar, quanto daqueles que têm apenas o intuito especulativo”, diz o procurador.
Bevilaqua afirma que “grandes pretensos proprietários de terra” de Rondônia mantêm vínculos com políticos e juízes locais e são vistos como “grandes benfeitores”, por criarem empregos e investirem na região.
“E essa proximidade, seja por corrupção, seja por afinidade, faz com que haja uma permissividade do Estado para com esses pretensos proprietários”.
Bevilaqua afrma que autoridades estaduais sempre tiveram essa postura permissiva, mas que operações do governo federal ajudavam a conter o desmatamento em Rondônia.
Para a ambientalista Ivaneide Bandeira, atitudes e declarações de Bolsonaro “empoderaram os criminosos do meio ambiente”. — Foto: BBC
Após a eleição de Bolsonaro, no entanto, ele diz que o governo federal deixou de fazer esse contraponto.
“Agora a situação é realmente desesperadora (…), e houve um alinhamento do governo estadual com o governo federal.”
Para Ivaneide Bandeira, fundadora da ONG ambientalista Kanindé, que atua em Rondônia desde 1992, atitudes e declarações de Bolsonaro “empoderaram os criminosos do meio ambiente”.
“Eles se sentem tão empoderados ao ponto de não terem vergonha de ir para o Facebook, para as redes sociais, e negociar terras.”
Em nota enviada à BBC, o Facebook diz que suas “políticas comerciais exigem que compradores e vendedores cumpram as leis e regulações locais quando compram ou vendem no Marketplace”.
“Estamos à disposição para trabalhar com as autoridades locais em qualquer uma das questões levantadas pela reportagem da BBC”, diz a empresa.
‘Questão de polícia’
A BBC compartilhou os achados da reportagem com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Ele afirmou que a venda ilegal de terras na Amazônia pelo Facebook “é uma questão de polícia”.
Questionado sobre o aumento no desmatamento em 2020, Salles o atribuiu ao impacto da pandemia nas ações de fiscalização.
A BBC questionou Salles sobre a visão favorável que os vendedores entrevistados têm de Bolsonaro e indagou se a retórica do presidente não estaria estimulando o desmatamento.
“O governo do presidente Jair Bolsonaro sempre deixou claro que é um governo de tolerância zero a qualquer crime, inclusive os ambientais”, disse Salles.
“Agora, o entendimento das pessoas acerca da sua situação pessoal, do que eles dizem nas entrevistas, cada um responde pelas suas atitudes. Para isso nós temos a polícia, temos o Código Penal, tem toda uma legislação para isso.”
O ministro defendeu, no entanto, “que alguns aspectos da legislação fundiária no Brasil precisam ser revistos, até para você ter uma solução definitiva para um problema que se arrasta há décadas”.
Ele criticou o Congresso por não ter aprovado a Medida Provisória 910/2019, que facilitaria a regularização de áreas desmatadas ilegalmente, e disse que o desmatamento também se deve à pobreza existente na Amazônia.
“São mais de 23 milhões de brasileiros que vivem numa situação muito ruim em termos de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e que precisam melhorar de vida.”
O próprio ranking do IDH mostra, no entanto, que o desmatamento não se traduz necessariamente em melhoria dos padrões de vida.
Rondônia, que já perdeu quase 30% de sua floresta, está em 19º lugar entre os 27 Estados brasileiros no ranking. O IDH do Estado cresceu 178% entre 1991 e 2017.
O Amazonas, 16º do ranking, teve avanço semelhante no IDH no mesmo período (170%), mas o fez preservando 97% da floresta nativa.
Legenda da foto acima: Thiago Karai Jekupé, ativista da Terra Indígena Guarani, no auditório da Folha – Bruno Santos/Folhapress
SÃO PAULO
Como parte dos projetos especiais dos 100 anos da Folha, o jornal convidou 13 integrantes de grupos sub-representados no jornalismo profissional praticado no Brasil. Eles expõem episódios de preconceito e desinformação, além de problemas na relação com jornalistas e na forma como a imprensa noticia —ou não noticia— questões que os afetam direta ou indiretamente.
Ativista da Terra Indígena Jaraguá, na zona norte de São Paulo, Thiago Karai Jekupé, 26 anos, fala sobre a representação dos indígenas na imprensa. Ele é conhecido por atuar na defesa do território contra projetos imobiliários. Leia entrevista ou assista ao vídeo (há uma versão com recursos de acessibilidade logo abaixo).
VERSÃO COM RECURSOS DE ACESSIBILIDADE
Minha avó foi a primeira cacique mulher no estado de São Paulo a assumir uma comunidade indígena. Ela mal sabia ler, então sempre pedia que os netos a acompanhassem nas reuniões e entendessem a situação para que ela pudesse assinar documentos. Fui aprendendo dessa forma. Quando ela faleceu, ficamos meio confusos —como que a gente vai ter um novo cacique na aldeia?
A Funai [Fundação Nacional do Índio] falava: “Vocês têm que ter o capitão da tribo, a liderança.” Hoje entendo que não, a gente precisa ter pessoas que estejam dispostas a lutar por um futuro.
Fui assumindo minhas responsabilidades. Comecei a ir a reuniões que envolviam temas relacionados à aldeia, ao direito indigenista. Passei um bom tempo como conselheiro distrital de saúde indígena e tive a experiência de entender a política do não-indígena: como eles cortam o orçamento, como mudam a lei, o que da Constituição é colocado em prática e o que não é.
O branco não tem palavra, por isso tem papel. Quando digo isso, olho para a história do país. Os navios chegaram até aqui e tudo eles anotavam, porque a história era o que eles iam escrever.
Thiago Karai segura um colar durante entrevista à Folha – Bruno Santos/Folhapress
A lei deveria ser usada para proteger o interesse de quem está ali. Tem a portaria 60/2015, que garante que qualquer projeto de urbanização que venha a danificar o meio ambiente e esteja próximo à terra indígena tem que ter um estudo de impacto ambiental e sociocultural.
Só que na prática a lei não serve. Vem uma construtora, derruba mais de 500 árvores e acha que eles podem fazer o que bem entendem. Não adianta. O próprio Ministério Público diz que não temos direito porque somos “urbanizados”, “aculturados”. Acham que se o indígena está próximo à cidade, à linha de trem, usa telefone, usa roupa, ele não é mais indígena.
Não dá para falar que o branco tem dívida histórica com o indígena porque a gente não emprestou nada para ninguém. Não existe dívida, existe crime. Um crime cometido pelo não-indígena —invasão, estupro, tortura— e que depois virou símbolo de orgulho: tem a rodovia dos Bandeirantes, a Anhanguera, o palácio dos Bandeirantes, a TV Bandeirantes. Essa crueldade é viva.
A gente dorme e acorda pensando: quando nossa comunidade vai ter que sair daqui para passar um outro empreendimento?
A gente não é levado a sério. A morte do indígena não é levada a sério. A perda do território não é levada a sério. Se está tendo desmanche dentro da Funai, ninguém enxerga. Eles criam uma cortina de fumaça e a boiada passa.
Quando Aruká voltou para sua terra, em 2008, entoou um choro ritual. Era a saudade dos seus mortos — um povo inteiro massacrado sucessivas vezes por invasores do território no sudeste do Amazonas.
O lamento, agora, é pela morte de Aruká. O guerreiro indígena tinha entre entre 86 e 90 anos e era o último homem Juma. Ele morreu nesta quarta-feira (17) vítima da covid-19, doença dos não indígenas que foi levada a sua terra. Deixou três filhas, netos e bisnetos.
Aruká, último guerreiro do povo Juma, morreu na quarta-feira (17) em decorrência da covid-19
As três filhas de Aruká casaram-se com homens do povo Uru-eu-wau-wau, uma vez que a população do povo Juma era pequena demais, resultado dos massacres e doenças.
Isso significa que os descendentes de Aruká carregam no sangue as duas etnias, mas, segundo o sistema patrilinear, são Uru-eu-wau-wau, e não Juma. É por isso que Aruká era considerado o último guerreiro de seu povo.